Contexto da Ciência da Prevenção ao Uso de Drogas no Brasil
As escolas brasileiras têm disseminado programas preventivos, dos mais variados modelos teóricos, visando reduzir o consumo de álcool e outras drogas entre adolescentes. Habitualmente o resultado destes programas não é avaliado, o que impede que seus efeitos sejam conhecidos. Os estudos científicos avaliativos existem para identificar onde e como as intervenções podem e devem ser aprimoradas, visando proteção dos envolvidos e bom uso dos recursos públicos disponíveis. Ressalta-se aqui que é louvável que instituições públicas façam parcerias com cientistas nas universidades para o desenvolvimento de avaliações de seus programas, visando a identificação de possíveis entraves e necessidade de adaptações.
A primeira grande inciativa neste campo de estudo ocorreu no período de 2013 a 2019, quando o Ministério da Saúde, ao trazer um programa preventivo europeu para o Brasil, decidiu avaliá-lo enquanto o adaptava para a realidade brasileira. Inicialmente, diferente do esperado, o programa #Tamojunto, demostrou efeitos negativos e aumentou o consumo de álcool entre adolescentes. Após diversas fases adaptativas e avaliativas, o programa passou a evidenciar efeito positivo, reduzindo a iniciação do uso de álcool entre adolescentes.
Outra importante parceria entre universidade e gestão ocorreu mais recentemente, envolvendo o Programa Educacional de Resistência às Drogas e à Violência (PROERD) e a Universidade Federal de São Paulo. O estudo, que contou com total envolvimento e colaboração da Polícia Militar de São Paulo, instituição responsável pela implementação do Programa, visou compreender o efeito do PROERD na iniciação e persistência do uso de drogas entre crianças e adolescentes, assim como os possíveis efeitos do programa nos comportamentos de bullying, com vistas a identificar possível necessidade de aprimoramento do programa.
O PROERD é hoje o programa de prevenção escolar mais disseminado nas escolas brasileiras. Ativo há 28 anos, possui imensa capilaridade e sustentabilidade nas 27 unidades da federação. O programa, em sua atual versão, “Caindo na Real”, é a adaptação da intervenção norte-americana Keepin’ it REAL (KIR), baseada na teoria de aprendizagem socioemocional, que busca desenvolver habilidades de vida fundamentais para o aprimoramento emocional e relacional da criança e do adolescente.
Avaliação do PROERD
Para a avaliação da efetividade dos dois currículos do PROERD foram realizados dois ensaios controlados randomizados, entre 4.030 estudantes, sendo 1.727 estudantes do 5º ano e 2.303 estudantes do 7º ano, num total de 30 escolas estaduais. As escolas foram randomizadas entre grupo controle, que não recebeu o programa, e grupo intervenção, que recebeu as 10 aulas do programa. Foram incluídas na lista de sorteio todas as escolas estaduais, localizadas no município de São Paulo, que não haviam recebido o programa PROERD nos 3 anos anteriores à pesquisa, visando evitar contaminação do grupo controle. O estudo foi financiado da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e publicado em setembro de 2021 na revista científica International Journal of Drug Policy (IJDP).
Principais Resultados
As análises evidenciaram ausência de efeito universal do PROERD em retardar ou reduzir a iniciação e o consumo de drogas em ambos os currículos avaliados. Já, os resultados das análises condicionadas de transição evidenciaram que os adolescentes que participaram do PROERD e que já bebiam em grandes quantidades antes de receberem a intervenção, tiveram maior chance de manter este padrão de consumo ao final do estudo, quando comparados aos adolescentes que não participaram do programa. No entanto, devido à baixa prevalência deste comportamento nesta amostra, este efeito atingiu um grupo bem reduzido de adolescente. Efeitos para o bullying também não foram encontrados.
Entrevistas realizadas com os policiais que aplicaram o programa durante este estudo, evidenciaram diversas dificuldades do processo de implementação. A partir da análise de conteúdo do material das entrevistas, os principais achados sugerem que: (1) ocorreram adaptações no programa para que sua implementação fosse viável, com inclusão de novos conteúdos e exclusão de conteúdos obrigatórios; (2) o acúmulo de funções dos policiais afetou a regularidade de aplicação das aulas; (3) o material precisa ser adequado à realidade dos estudantes brasileiros, considerando, inclusive, a estrutura escolar disponível e o desenvolvimento cognitivo dos estudantes.
Os resultados desse estudo conflitam com a maioria dos resultados obtidos em estudos que avaliaram o efeito do Keepin’ it REAL internacionalmente, que sugerem redução do uso de álcool, maconha e tabaco entre adolescentes quando estes são expostos ao currículo do 7º ano. Porém, tais efeitos só foram encontrados nos estudos em que os currículos foram adaptados para cada população estudada, o que levanta um sinal de alerta para a falta de adaptação do programa no Brasil. Currículos não adaptados também foram inefetivos em outros países.
Limitações
É preciso apontar que há limitações em nosso estudo que precisam ser consideradas. A principal delas diz respeito ao universo amostral. Destaca-se que para que o desenho experimental do estudo fosse padrão-ouro, apenas escolas que não haviam recebido o programa PROERD nos 3 anos anteriores à pesquisa foram incluídas, visando evitar que escolas que já aplicavam o PROERD pudessem eventualmente ser randomizadas como grupo controle e, neste caso, invalidar o grupo controle por contaminação. Na prática, notou-se que apenas escolas periféricas não haviam recebido o PROERD neste período. Assim, a amostra de escolas incluída no estudo, apesar de randomizada, acabou incluindo majoritariamente escolas de bairros periféricos e, assim, não representou o perfil global das escolas públicas do município de São Paulo. Este fato nos leva à impossibilidade de generalização dos achados para todas as escolas do município de São Paulo e mesmo do Brasil. Ainda, um em cada quatro adolescentes participantes do estudo faltaram no acompanhamento de 9 meses. Este tipo de perda, apesar de esperada, também pode comprometer os resultados, já que foi observada diferença no perfil do consumo de drogas entre os alunos que foram acompanhados e aqueles que foram perdidos no acompanhamento.
Recomendações
Apesar das limitações, o presente estudo avança no conhecimento da ciência da prevenção brasileira ao trazer os primeiros resultados de efeito do currículo “Caindo na Real” do PROERD. Tendo em vista que o PROERD é uma política pública para as escolas estaduais de São Paulo (Lei Estadual 17.171/2019), os achados desta pesquisa, com esta população, apontam a necessidade de uma revisão das ações do programa, pontuadas abaixo:
• Adaptação cultural do currículo do Keepin’ it Real (KIR) para o Brasil
o Adequação das atividades, considerando a limitação de leitura e escrita das crianças de 5º ano, bem como as limitações da estrutura escolar brasileira.
o Adaptação dos exemplos ilustrativos do manual do currículo do 5º e 7º ano,
para que reflitam a realidade dos jovens brasileiros.
• Alerta aos instrutores sobre as adaptações que têm sido realizadas, evitando retirada de componentes essenciais e inserções de conteúdos não previstos, o que compromete a manutenção do modelo teórico do programa, responsável por seu efeito.
• Estreitamento da relação entre coordenadores do programa e instrutores, visando a ampliação da supervisão e apoio interno à implementação.
• Reavaliação do programa após as adaptações. No caso de um efeito negativo recorrente ser identificado, é fundamental a substituição do currículo, como ocorreu em 2014, quando o PROERD acolheu um novo programa internacional.
Por fim, destaca-se que, nos últimos meses, a UNODC (Escritório das Nações Unidas para Drogas em Crime), em sua unidade central europeia, vem elaborando um manual para orientação de policiais que aplicam programas de prevenção em escolas, com recomendações sobre o que deve ou não deve ser implementado, expondo quais estratégias e discursos possuem efeitos negativos e quais favorecem realmente a prevenção.
Diante disto e das estratégias que vêm sendo discutidas internacionalmente, os pesquisadores envolvidos na avaliação do PROERD não recomendam a extinção do programa, mas urgente adequação do conteúdo e da implementação, considerando as recomendações apontadas pelo presente estudo. Além de, no futuro próximo, adesão às orientações para policiais que serão lançadas pela UNODC.
Colocamo-nos à disposição para seguir assessorando a Polícia Militar do Estado de São Paulo no planejamento da reestruturação do programa ou, ainda, na seleção de currículo mais adequado à realidade brasileira, a partir de ampla gama de programas baseados em evidência científica de alta efetividade e catalogados em repositórios internacionais.
Profa. Dra. Zila van der Meer Sanchez (coordenadora geral)
Dra. Juliana Yurgel Valente
Profa. Dra. Sheila Cavalcante Caetano
Julia Dell Gusmões, mestre
Valdemir Ferreira-Junior, mestre
Prof. Dr. Hugo Cogo-Moreira
Profa. Dra. Solange Andreoni
Segue o artigo publicado no IJDP:
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